Juros abusivos do rotativo: a bola de neve pode ter fim; saiba como
Publicado em 27/05/2024
Especialistas afirmam que mesmo contratos anteriores à nova lei do teto das taxas podem ser revisados e recomendam atenção aos contratos
A servidora pública Ana Paula Gomes, 33 anos, pretendia reformar a casa. Por ter a facilidade de contrair empréstimos consignados, aqueles com desconto em folha, contratou a modalidade para fazer obras e comprar móveis para a residência.
Um novo imprevisto acabou obrigando a servidora a pegar um novo empréstimo. "Tive um problema no carro, e aí eu precisei pegar mais outro consignado e juntar para pagar mecânico, oficina”, disse.
Com a margem comprometida, a verba para arcar com as despesas do cotidiano diminuiu e ela precisou utilizar o cartão de crédito. Foi quando a bola de neve cresceu. "Perdi o controle do valor do cartão de crédito e, por eu ter também a minha margem já usufruída e parte do meu salário presa ao consignado, não consegui pagar mais nada", disse.
A situação saiu do controle e Ana Paula passou a pagar apenas o valor mínimo das faturas. "As parcelas já estavam em mais de R$ 1.300, sendo que, por eu ter o consignado, era mais ou menos isso que eu recebia de valor líquido do meu salário", contou.
A dívida inicial, que estava em R$ 1.300 reais, em agosto de 2022, virou R$ 6.500 em março do ano seguinte. A impossibilidade de arcar com a despesa levou a servidora a procurar ajuda jurídica.
"Procurei um advogado, que me explicou era um caso de superendividamento, e entrei na Justiça para recorrer desses valores que o banco estava me cobrando", destacou.
Segundo Guilherme Monteiro, sócio do Monteiro e Moura Advogados, escritório especializado em recursos contra instituições financeiras, todas as dívidas de Ana Paula somavam um montante de R$ 191.397,85. Foi preciso fazer um acordo com as financeiras para garantir a subsistência da servidora, sem deixar de honrar os pagamentos.
"Nesse caso, elaboramos um plano de pagamento para a consumidora efetuar o pagamento por todos os empréstimos sem comprometer a própria existência. Então, ela vai efetuar um pagamento de no máximo 30% da renda líquida, e através do plano, que vai durar 60 meses, a pessoa vai conseguir quitar as dívidas. O intuito é organizar a vida da pessoa de uma forma que ela não saia prejudicada", explicou.
O advogado destacou que os bancos frequentemente fornecem crédito de maneira irresponsável, contrariando as leis e resoluções do Banco Central, que visam proteger os consumidores.
"A maior causa de endividamento dos nossos clientes é a dificuldade em lidar com as contas. Os bancos não se preocupam se as pessoas conseguem arcar com as despesas básicas, fornecendo crédito sem considerar a capacidade de pagamento dos consumidores," disse Monteiro.
Ele enfatiza a importância de procurar ajuda o quanto antes. "A maior parte das pessoas decide procurar um serviço especializado quando a situação já saiu do controle. É muito importante agir antes que a situação chegue até este ponto para amenizar os danos que o consumidor pode sofrer. Bastam alguns meses em atraso para que uma dívida simples ultrapasse os seis dígitos," destacou.
Enxurrada virou dívida
O professor Juliano Torres Fraga, 50 anos, passou por uma enchente em 2011 na cidade de São Lourenço do Sul, no Rio Grande do Sul. Para reconstruir a casa, e a vida, precisou utilizar empréstimos e cartões de crédito. Após algum tempo, não conseguiu pagar e a dívida ficou praticamente impagável.
Eu sofri esse processo da enchente. Aí fica a vontade de voltar à normalidade de uma forma rápida; comprar panelas novas, bujão de gás, fogão, geladeira, TV, sofá, camas, coisas comuns. Como me preocupar com algo que eu não posso controlar”, questionou.
A conta apertou, as faturas atrasaram e a conta do professor ficou bloqueada. "Como meus cartões eram vinculados à minha conta corrente, o Bradesco não me permitia usar as contas, então por isso virou a famosa bola de neve", disse. A dívida que inicialmente era de cerca de R$ 40 mil subiu para quase R$ 150 mil. Juliano acredita que o desespero e a falta de informação permitiram o superendividamento.
"Eu fui culpado nisso tudo, por querer voltar ao normal rapidamente, querer viver a minha vida normalmente, querer ter as coisas que eu tinha, mas na verdade foi uma questão da natureza que me colocou nesse drama. Eu não sou economista, não domino essa parte. E assim fui entrando cada vez mais no buraco", lamentou.
Sacrifício
Para o economista Ricardo Maluf, os juros passam a ser abusivos quando excedem as praticadas pelo mercado ou impõem esforço absurdo ao consumidor na hora de quitar.
"Juros abusivos são aqueles acima do que o Banco Central determinou para determinados serviços ou produtos. É quando a instituição obriga o consumidor a se esforçar absurdamente para pagar, acima do que é previsto na lei por uma penalidade muito grande ou fazer com que ele se endivide absurdamente por um produto e serviço que era barato e que se tornou caro", explicou.
De acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio, divulgada no dia 4 de maio, cerca de 78,3% de famílias brasileiras estavam endividadas em abril deste ano.
Especialista recomenda atenção
O especialista em finanças e investimentos Hulisses Dias destaca a importância de o cliente revisar o contrato do cartão de crédito e ficar atento a qualquer comunicação sobre alterações nas taxas de juros. "A falta de transparência ou mudanças não comunicadas adequadamente podem configurar práticas abusivas", explicou.
O especialista ressalta que o rotativo e o cheque especial são as fontes de crédito mais onerosas ao consumidor. Segundo Hulisses, se o consumidor não conseguir pagar a fatura do cartão de crédito, o empréstimo pessoal pode ser uma opção de juros menores. Outro ponto importante é a organização das finanças.
"O consumidor precisa se questionar sobre o porquê de estar na situação atual e o que pode ser mudado para evitar que isso se repita no futuro. É importante sempre possuir uma reserva financeira para emergências," concluiu.
Proteção
Para Daniel Blanck, advogado especializado em Direito do Consumidor, a proteção ao endividado é garantida pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Ele destaca que mesmo débitos anteriores à nova legislação de janeiro deste ano — que limita a dívida ao 100% do valor inicial — podem ser questionadas na justiça, se houver abusividade nos juros e encargos aplicados.
"O princípio da função social do contrato e o respeito à boa-fé objetiva podem ser invocados para reavaliar situações de endividamento excessivo, mesmo antes da nova lei," afirmou.
Para consumidores que se encontram nessa situação, Blanck recomenda negociar com o banco, registrar a ocorrência no Banco Central, buscar o Procon ou, em último caso, procurar um advogado ou a defensoria pública para mover uma ação judicial.
"Esses passos são essenciais para garantir que o consumidor não seja prejudicado por práticas abusivas e possa reorganizar suas finanças de maneira justa," concluiu Blanck.
Devolução em dobro
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública reforça que a cobrança de juros abusivos pode ser revista, mesmo em contratos anteriores à vigência da nova lei.
"Os consumidores precisam ter conhecimento dos valores de taxas e de juros que estão pagando. Tem direito de solicitar informações à instituição financeira e segue a regra anterior de não haver incidência de juro sobre juro", informou a pasta por nota.
De acordo com Vitor Hugo do Amaral, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, o consumidor tem direito a ressarcimento. "Caso seja constatada a cobrança abusiva, os valores indevidos devem ser restituídos em dobro", disse.
"O consumidor deve sempre se reportar à instituição financeira pelos canais de comunicação disponíveis, solicitando os protocolos de atendimento que devem indicar prazo para solução da demanda. Na ineficiência destes, deve-se procurar os órgãos de defesa do consumidor ou formalizar reclamação na plataforma on-line consumidor.gov.br, podendo ainda ajuizar ação no Poder Judiciário."
Fonte: O Dia Online - 26/05/2024
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