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Análise processual e jurídica da Lei do Superendividamento
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Análise processual e jurídica da Lei do Superendividamento

Publicado em 25/11/2022 , por Camila Knihs da Luz

Nos últimos anos, com o impacto da pandemia de Covid-19, houve na economia o aumento do endividamento da população brasileira: desemprego, utilização de empréstimos bancários, diminuição da renda e acréscimo nas despesas variáveis (alimentação, farmácia, gasolina etc.).

No ano de 2021, conforme o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), o Brasil possuía 30 milhões de brasileiros superendividados [1], ou seja, consumidores de boa-fé que não conseguiam saldar suas dívidas sem prejudicar seu mínimo existencial. Cabe destacar que o mínimo existencial está conceituado e regulamentado pelo Decreto nº 11.150/2022.

 

Desse modo, a sancionada Lei nº 14.181/2021 (Lei do Superendividamento) modificou alguns dispositivos do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90) e do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03). Com a finalidade de prevenção, tratamento judicial e extrajudicial da pessoa natural do consumidor superendividado, evitando práticas abusivas do fornecedor de serviço ou produto, as quais incluem crédito (Artigo 54-G da Lei do Superendividamento).

Por conseguinte, para aderir ao processo de repactuação de dívidas (artigo 104-A) pelo rito da Lei nº 14.181/2021, há requisitos legais que devem ser cumpridos para posteriormente, a requerimento da parte autora, se instaurar o processo de superendividamento (artigo 104-B).

1. Petição inicial
Neste sentido, conforme artigo 54-A, § 1º, § 2º, § 3º e o artigo 104-A, caput, § 1º da Lei nº 14.181/2021, a inicial deverá conter:

a) A demonstração da incapacidade financeira, com totalidade dos débitos que impedem e afetem, expressamente, o seu mínimo existencial (artigo 6º, XII e artigo 54-A, § 1º da Lei nº 14.181/2021).

b) A inexistência de má-fé ou de fraude no adquirimento das dívidas (artigo 54-A, § 3º e artigo 104-A, § 1º).

c) Dívidas que não decorrem da contratação e da aquisição de produtos ou de serviços de luxo (artigo 54-A, § 3º).

d) Dívidas não decorrentes de crédito com garantia real, crédito de financiamento imobiliário e crédito rural (artigo 104-A, § 1º).

e) A apresentação de proposta do plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos (artigo 104-A, caput, da Lei nº 14.181/2021).

É cediço destacar que a proposta do plano de pagamento deve apresentar (104-A, §4º), por exemplo, garantias, formas de pagamento, medidas de dilação de prazos de adimplemento, diminuição de encargos da dívida, indicação da data de início para exclusão do nome do devedor no cadastro de inadimplentes, suspensão e extinção das ações judiciais em curso.

2. Audiência de conciliação (artigo 104-A)
Assim feito, atendido os requisitos da inicial, será realizada a audiência conciliatória com todos os credores (artigo 104-A, caput, da Lei nº 14.181/2021), oportunidade de negociar e debater.

Ocorrendo a efetiva citação (artigo 246 e ss. do CPC/15) dos credores para comparecimento na audiência de conciliação, se adverte também que o não comparecimento injustificado de qualquer credor, ou de seu procurador com poderes especiais e plenos para transigir, resultará na suspensão da exigibilidade do débito.

Assim como a interrupção dos encargos da mora, bem como o acatamento compulsório ao plano de pagamento da dívida. Se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, o pagamento para esse credor somente ocorrerá após o pagamento para os credores presentes na audiência conciliatória (artigo 104-A, § 2º).

Havendo conciliação com qualquer credor, o acordo homologado valerá como título executivo judicial com força de coisa julgada e constará o plano de pagamento da dívida (artigo 104-A, § 3º da Lei nº 14.181/2021).

2.1 Conciliação infrutífera e plano judicial compulsório
É somente após a audiência de conciliação infrutífera em relação aos credores que não acordaram, independentemente de nova intimação, inicia-se o prazo de 15 dias para, a requerimento do devedor pleitear o processo de repactuação forçada (processo de superendividamento) e eventual revisão e integração contratual (artigo 104-B). Na inércia, o feito será extinto.

Dado prosseguimento, os credores citados possuem o prazo de 15 dias, para juntar documentos e as razões de não aceitar o plano voluntário ou de renegociação (artigo 104-B, § 2º).

Por conseguinte, o juiz pode nomear até mesmo um administrador judicial, sendo que este, no prazo de até 30 dias, deverá apresentar um plano de pagamento com critérios de postergação ou de diminuição dos encargos das dívidas, caso necessário (artigo 104-B, § 3º).

O plano judicial compulsório garantirá aos credores, ao menos, o valor principal corrigido, tendo o pagamento da primeira parcela em 180 dias e prazo máximo de cinco anos (artigo 104-B, § 4º). Cabe destacar, a inexistência de previsão no que tange a impugnação acerca dos créditos estabelecidos.

2.2 Conciliação administrativa (artigo 104-C da Lei nº 14.181/2021)
Como modalidade facultativa e concorrente, é competência dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) a prevenção e a conciliação, com as instituições credoras ou suas associações, podendo o processo de repactuação de dívidas ser regulado por meio de convênios específicos, acordado entre ambos.

3. Credor(es) e boa-fé objetiva
Sendo expresso na Lei, a palavra "credores", duvidoso ou incabível seria o consumidor superendividado iniciar a ação de repactuação de dívidas pelo rito da Lei do Superendividamento, contra somente um "credor".

Possuindo o consumidor superendividado uma ação de cobrança iniciada por um dos credores que busca a satisfação do crédito e não obtendo a conciliação, será possível o consumidor superendividado iniciar a ação de repactuação de dívidas?

Para resposta quanto a essa pergunta, deve ser analisada a boa fé objetiva que gera o dever jurídico entre o devedor e o credor, de acordo com as circunstâncias do caso. Desse modo, como regra de comportamento, leva-se em consideração a eticidade, a lealdade, a honestidade entre o direito e as obrigações das partes, evitando a omissão de informações importantes sobre a matéria do negócio jurídico.

Como consequência, o credor não deve impelir o endividamento despropositado do devedor, ou seja, não deve fornecer créditos irresponsáveis os quais vão além da capacidade de pagamento do consumidor. Destarte, o Código Civil de 2002 refere-se à boa fé objetiva nos dispositivos 422, 187 e 113, tal qual nas relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 4º, III e 51, IV.

4. O processo de repactuação de dívidas não admite a produção de provas, a inversão do ônus da prova, nem a concessão da tutela de urgência
As pretensões constitutiva, declaratória ou condenatória, a inversão do ônus da prova e a tutela de urgência não são admissíveis no processo de repactuação de dívidas.

Assim, conforme ensinamentos dos doutrinadores Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves:

"Quanto ao pedido, tem-se mais uma singularidade, porque o pedido não terá nenhuma das tutelas tradicionais do processo de conhecimento. Afinal, o autor não pedirá declaração, constituição e tampouco condenação, mas somente a citação dos réus para que compareçam a uma audiência na qual se tentará uma autocomposição para o equacionamento do pagamento de suas dívidas. É claro que, uma vez celebrada a autocomposição, a situação jurídica das partes será alterada, seguida por uma sentença homologatória de natureza meramente declaratória. Mas os pedidos não são nesse sentido e nem poderiam ser, porque nem mesmo o plano de pagamento será apresentado nesse momento, mas somente na própria audiência."(Manual do Direito do Consumidor. 11ª ed. São Paulo: Método, 2022. p. 837) [2].

In casu, o consumidor que pleitear pela necessidade de produção da prova pericial ou oral, para comprovar efetivamente sua condição de superendividado, deve propor ação de produção antecipada da prova, conforme artigos 381 a 383 do CPC/15.

Porquanto, na primeira fase, como o pedido não configura as tutelas tradicionais do processo de conhecimento, porque o requerente não pleiteia declaração, constituição e muito menos condenação, mas apenas a citação dos credores para que compareçam à solenidade, por tal, não admite-se a inversão do ônus da prova e o deferimento da tutela de urgência.

Neste sentido, iniciada a ação de repactuação de dívidas, não resulta na suspensão ou extinção imediata das ações que estão em desfavor do devedor. Também, ausente a probabilidade do direito, não suspende automaticamente o cumprimento das obrigações contratadas (TJ-SC, Agravo de Instrumento nº 5058408-21.2021.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, relatora Soraya Nunes Lins, 5ª Câmara de Direito Comercial, j. 23/6/2022) [3].

5. Superendividamento e declaração de insolvência civil do devedor
Como distinção, a abordagem da Lei nº 14.181/2021, se volta para o consumidor, com a prevenção e tratamento do superendividamento, buscando garantir a oportunidade na relação de consumo e a quitação de suas dívidas através do plano de pagamento. Em contrapartida, na insolvência prevalece o devedor na quitação de suas dívidas, com a liquidação de seus bens.

Explana a lei, que o pedido do consumidor pelo processo de repactuação de dívidas não se trata de uma declaração de insolvência civil. Garantindo assim, ao devedor repetir o pedido depois de dois anos, contados a partir da liquidação das obrigações contidas no plano de pagamento homologado, o qual não pode ultrapassar cinco anos para o cumprimento, com fundamento no artigo 104-A, § 5º da referida lei.

5.1 Questão processual
Conforme o artigo 1.052 do CPC/15, até a edição de lei específica, as execuções contra devedor insolvente, em andamento ou que venham a ser propostas, continuam reguladas pelo Livro II, Título IV, da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

Neste norte, conforme expresso no artigo supracitado, até que haja lei específica que regule a decretação de insolvência civil do devedor, deverá ser observada a orientação disposta no artigo 748 e ss. do CPC/73 [4]:

a) Cabimento da insolvência civil do devedor (Artigo 748 do CPC/73): toda vez que as dívidas excederem à importância dos bens do devedor.

b) Presunção da insolvência (Artigo 750 do CPC/73) quando: I - o devedor não possuir outros bens livres e desembaraçados para nomear à penhora; Il - forem arrestados bens do devedor, com fundamento no art. 813, I, II e III.

c) Efeitos da declaração da insolvência do devedor (Artigos 751 e 752 do CPC/73): I - o vencimento antecipado das suas dívidas; II - a arrecadação de todos os seus bens suscetíveis de penhora, quer os atuais, quer os adquiridos no curso do processo; III - a execução por concurso universal dos seus credores. O devedor perde o direito de administrar os seus bens e de dispor deles, até a liquidação total da massa.

d) Legitimidade ativa na ação declaratória de insolvência civil (Artigo 753 do CPC/73): I - por qualquer credor quirografário; II - pelo devedor; III - pelo inventariante do espólio do devedor.

Legitimidade ativa na ação de repactuação de dívidas (Artigo 54-A, § 1º da Lei do Superendividamento): consumidor superendividado.

e) Natureza jurídica da sentença de insolvência (artigo 761 do CPC/73): sentença declaratória de insolvência civil.

f) Efeitos da sentença que declara a insolvência (Artigo 761 do CPC/73), o juiz: I - nomeará, dentre os maiores credores, um administrador da massa; II - mandará expedir edital, convocando os credores para que apresentem, no prazo de 20 (vinte) dias, a declaração do crédito, acompanhada do respectivo título.

Diferentemente do que ocorre na sentença homologatória de transação, em audiência de conciliação no processo de repactuação de dívidas (artigo 487, III, b do CPC/15 e artigo 104-A, § 3º da Lei do Superendividamento), a qual conterá o plano de pagamento da dívida e terá efeito de coisa julgada.

5.2 Adequação do pedido
Ademais, cabe a requerente adequar seus pedidos em consonância ao rito, ou seja, conforme o procedimento da Lei do Superendividamento ou da ação declaratória de insolvência civil, pois é incabível a cumulação de ambos.

Indago, o que a Lei do Superendividamento não acolhe, como dívidas decorrentes da aquisição ou contratação de produtos, serviços de luxo de alto valor (artigo 54-A, § 3°), crédito com garantia real, crédito de financiamento imobiliário, crédito rural e contratos celebrados dolosamente sem o propósito de realizar pagamento (artigo 104-A, § 1º). Cabe propor a ação declaratória de insolvência civil?

As hipóteses dos dispositivos supramencionados afastam a possibilidade de utilização do processo de repactuação de dívidas, pois a lei expressamente não permite. Assim, se o requerente após ser intimado para emendar a inicial regularizando os pedidos com o procedimento adequado e não cumprido, resultará no indeferimento da petição inicial (artigos 485, I, e 321, parágrafo único, do CPC/15).

6. Jurisdição
Mesmo havendo empresa pública federal como credor(es), o processo de repactuação de dívidas com base na Lei do Superendividamento, é competência da Justiça Estadual, conforme interpretação do artigo 109, I da CF/88 e artigo 45, I do CPC/15.

7. Juízo competente
Em regra, o pedido do processo de repactuação de dívidas, por meio de audiência conciliatória ou plano judicial compulsório, com base na Lei do Superendividamento, é competência dos juízos cíveis.

Do mesmo modo, aplicam-se à causa de pedir e o pedido de inexistência de relação jurídica/negocial, pela alegada falta de contratação, com ou sem pretensão indenizatória cumulada e não incluam o pleito de revisão contratual.

Porém, se a causa de pedir e o pedido abordam a natureza do pacto bancário e/ou cláusulas, como revisão de cláusulas contratuais consideradas abusivas, com ou sem pretensão indenizatória, resulta em competência das unidades especializadas.

Assim, quando demonstrado aos autos a relação jurídica entre o devedor e a(s) instituição(ões) financeira(s) afirmada por pactos específicos, os quais se pleiteia a análise dos contratos bancários, diante das dívidas aparentemente impagáveis, se busca o reajuste das parcelas devidas, torna indispensável a revisão das cláusulas pactuadas. Por tal, há temática bancária pelo viés revisional das cláusulas contratuais, sendo competência da Unidade Estadual de Direito Bancário (TJ-SC, Conflito de competência cível - Recursos Delegados nº 5004983-45.2022.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, relator Altamiro de Oliveira, Câmara de Recursos Delegados, j. 27/4/2022) [5].

8. Considerações finais
Por derradeiro, a Lei do Superendividamento aplica-se sob a égide da boa-fé objetiva que norteia a relação de consumo, resultando em direito e obrigações do devedor e do credor. A questão processual e jurídica deve ser observada para atingir ao fim determinado.

Por consequência, com a ausência de transação na audiência de conciliação, a requerimento do devedor, o processo de superendividamento, concede ao juiz o poder de determinar um plano aos credores por meio da decisão monocrática, e não conjunta com os credores, demonstrando a solução de natureza compulsória da Lei do Superendividamento.

Portanto, o plano judicial compulsório aplica-se em alguns casos de superendividamento, porém, não nas hipóteses de insolvência civil do devedor.

____________________

[1] IDEC. Como o Brasil lidará com o superendividamento?. São Paulo: IDEC, 2021. Disponível em: https://idec.org.br/idec-na-imprensa/como-o-brasil-lidara-com-o-superendividamento. Acesso em: 13 nov. 2022.

[2] TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual do Direito do Consumidor. 11ª ed. São Paulo: Método, 2022. p. 837.

[3] TJ-SC, Agravo de Instrumento n. 5058408-21.2021.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Soraya Nunes Lins, Quinta Câmara de Direito Comercial, j. 23/6/2022.

[4] BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Brasília, DF.

[5] TJ-SC, Conflito de competência cível - Recursos Delegados n. 5004983-45.2022.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Altamiro de Oliveira, Câmara de Recursos Delegados, j. 27/4/2022.

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 24/11/2022

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