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Talco Johnson e Jonhson: até quando?
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Talco Johnson e Jonhson: até quando?

Publicado em 03/11/2022 , por Marcelo Junqueira Calixto e Alan Sampaio Campos

Não é de hoje que a empresa Johnson e Johnson tem sido alvo de ações judiciais que objetivam a indenização de consumidores vítimas do uso do talco produzido pela empresa, provável causador de câncer de ovário em mulheres ao redor do mundo [1].

Enquanto os consumidores alegam que o produto contém material cancerígeno, como o amianto, e que seu uso regular na higiene íntima feminina desenvolve câncer de ovário, a referida empresa defende que o talco é feito à base de minerais e que diversas pesquisas científicas comprovam a segurança do produto.

 

Apesar da defesa da empresa, é curioso mencionar que nos Estados Unidos e no Canadá o produto deixou de ser comercializado no ano de 2020, supostamente em razão de uma queda no interesse dos consumidores acerca do produto decorrente da dúvida causada pelo assunto envolvido nos processos judiciais [2]. Nessa mesma linha de raciocínio, recentemente, a Johnson e Johnson anunciou que promoverá a retirada de seu talco do mercado brasileiro no próximo ano, realizando a mudança da composição do produto para o amido de milho, por ser um insumo mais sustentável [3].

Em que pese o produto em comento não se tratar de um medicamento, levando em conta a quantidade de ações judiciais existentes, a amplitude da utilização do produto no mundo e a possível propagação dos efeitos do dano aos consumidores no tempo, por analogia, pode-se relembrar alguns casos de grande repercussão que movimentaram o cenário jurídico no passado. Nesse passo, vale citar o caso Sindell v. Abbott. Laboratories [4], o qual tratou dos danos causados pelo uso de dietilstilbestrol, o estrogênio sintético (conhecido pela sigla D.E.S). Em suma, nos EUA, diversas empresas vendiam o estrogênio sintético, em larga escala durante anos, até o produto ser retirado do mercado em razão da constatação de que as gestantes que consumiram o produto deram à luz a crianças que tinham tendência a desenvolver vários tipos de câncer. Outro caso que reverberou na sociedade foi aquele que envolveu o uso da talidomida, droga que visava controlar a ansiedade, tensão e náuseas, mas que causava a malformação dos fetos nas gestantes [5].

Na perspectiva brasileira, inicialmente, cumpre lembrar que a Constituição Federal da República revela a segurança como um direito fundamental da pessoa humana, consoante o exposto no caput do seu artigo 5º. Nessa esteira, o Código de Defesa do Consumidor trouxe diversos princípios que norteiam as relações de consumo, cabendo destacar o princípio da segurança e da qualidade apregoado no inciso V do artigo 4º que, ao versar sobre um dos objetivos da política nacional de consumo, ressalta a necessidade de incentivar os fornecedores a criarem meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços. Por conseguinte, o Código de Defesa do Consumidor dedica uma seção específica para tutelar a proteção à saúde e segurança do consumidor, estabelecendo que os produtos colocados no mercado não poderão acarretar risco à saúde ou segurança dos consumidores (artigo 8º), sendo certo que o fornecedor não poderá inserir no mercado um produto que possua potencial risco de dano (artigo 10), sob pena de responder civilmente no caso de descumprimento (artigo 6º).

Nesse contexto, a doutrina considera que os produtos podem manifestar vícios de qualidade por insegurança [6], ou seja, vícios que podem atingir a integridade psicofísica dos consumidores, gerando a responsabilidade do fornecedor pelo fato do produto, nos termos do artigo 12 do CDC. Nesse sentido, para fins de configuração da responsabilidade civil pelo fato do produto, o parágrafo primeiro do artigo 12 dispõe que “o produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera”, revelando que, além da capacidade de gerar o dano, a desconformidade do produto deve violar a legítima expectativa do consumidor [7].

Outrossim, em relação à segurança, considerando a legítima expectativa do consumidor como fiel da balança, a doutrina divide os produtos em três categorias: a periculosidade inerente, a periculosidade adquirida e periculosidade exagerada [8]. Em relação à periculosidade inerente, não há a frustração da legítima expectativa do consumidor porque o risco do produto é previsível, afastando o vício de qualidade por insegurança [9]. Por outro lado, a periculosidade adquirida é aquela em que o risco é imprevisível, não sendo intrínseca ao produto, havendo, por consequência, a superação da legítima expectativa criada pelo consumidor e a configuração do defeito do produto. Quanto à periculosidade exagerada, refere-se ao produto que possui um risco excessivo, com alto grau de periculosidade [10].

Ademais, tendo em vista que o parágrafo terceiro do artigo 12 dispõe sobre as excludentes de responsabilidade civil do fornecedor, destacando a inexistência de defeito do produto como tal, cumpre esclarecer que a doutrina classifica esse vício da seguinte forma: defeitos de fabricação, defeitos de concepção e defeitos de comercialização (ou informação), nos termos do caput do artigo 12. Importa, ainda, expor que o momento em que o produto é colocado no mercado deve ser sempre observado com o escopo de avaliar a legítima expectativa do consumidor [11] e a pretensa violação da sua segurança.

Sobre o defeito de fabricação, o STJ julgou um caso paradigmático que tratava da aquisição de alimento (pacote de arroz) com corpo estranho (conglomerado de fungos, insetos e ácaros) em seu interior, considerando que a exposição do consumidor ao risco concreto de lesão à sua saúde e à sua incolumidade psicofísica se trata de uma causa suficiente para gerar o dano moral pleiteado [12].

Já em relação ao defeito de concepção, o caso do medicamento Sifrol tem sido referenciado pela doutrina, no qual uma consumidora teria desenvolvido uma compulsão patológica para o jogo em razão do uso do fármaco. A propósito, nesse caso, o STJ ressaltou que o defeito ocorreu desde a concepção diante da fórmula do produto e da imprevisibilidade do efeito colateral causado pelo medicamento, intensificada pela falta de informação em sua bula [13]. O caso também tem sido destacado pela doutrina por afastar a excludente do risco do desenvolvimento e entender pela incidência do fortuito interno na hipótese [14].

Por último, vale comentar sobre o caso do sabão em pó Ace, no qual uma consumidora reclamava que o contato com o produto causou dermatite na sua pele. Não obstante a existência de uma anotação simples na embalagem do produto informando que o contato prolongado com a pele deveria ser evitado, o STJ entendeu que a informação prestada não foi suficiente e clara, ocasionando o defeito de comercialização, vício de qualidade por insegurança derivado da ausência de informação [15].

Noutro giro, considerando o talco comercializado pela Johnson e Johnson e a hipótese de que os fatos narrados nas ações judiciais acerca da existência de amianto na composição do produto são verdadeiros, compete analisar essa situação fática conforme os preceitos do ordenamento jurídico pátrio.

A princípio, impende recordar que o instituto jurídico da responsabilidade civil deve ser pautado na solidariedade social e na dignidade da pessoa humana, fundamentos da Constituição Federal da República, de forma a atender a reparação integral da vítima [16].

Nessa direção, conforme exposto, o CDC aponta que um produto será defeituoso quando for afetada a legítima expectativa de segurança do consumidor. Nesse diapasão, importa mencionar que o talco é amplamente utilizado em cosméticos e produtos de higiene infantis, o que certamente deve ser levado em consideração quando da análise da tutela dos consumidores em razão do agravamento da vulnerabilidade oriunda do perfil daqueles.

No caso em tela, pode-se ventilar que a imprevisibilidade do risco ao usar o talco da empresa Johnson e Johnson caracteriza uma periculosidade adquirida do produto, configurando um vício de qualidade por insegurança em virtude de um defeito de concepção diante da substância supostamente utilizada na composição do produto (amianto). Sobre o amianto, já foi constatado pelos órgãos de saúde que a substância pode causar vários tipos de câncer [17], sendo proibida a sua comercialização em diversos países, inclusive no Brasil [18], devido aos riscos nocivos à saúde humana.

Noutra perspectiva, a ausência de informação na embalagem do produto acerca do amianto em sua composição configuraria um defeito de comercialização, caracterizando, também, a responsabilidade civil pelo fato do produto decorrente do descumprimento do dever de informar.

Na verdade, consoante descrito acima, considerando que o amianto é reconhecidamente cancerígeno para os humanos, parece que o talco em comento enquadrar-se-ia melhor na categoria de periculosidade exagerada, tendo em vista a alta probabilidade de o produto causar um dano ao consumidor. Aliás, parece que o caso cai como uma luva na redação do artigo 10 do CDC: "o fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança".

Por qualquer prisma que se observe, sendo confirmado que o talco possui o amianto na sua composição, a potencialidade nociva do produto, conjugada com a quebra da legítima expectativa do consumidor, evidencia a responsabilidade civil do fornecedor pelo fato do produto.

De toda sorte, a empresa Johnson e Johnson continua a defender a ausência de defeito do seu talco, ressaltando, por outro lado, que promoverá a retirada do produto do mercado de consumo no próximo ano. Até lá, roga-se para que a fornecedora de produtos esteja certa sobre a segurança do talco e que esse não seja mais um caso de violação ao direito dos consumidores.

 

[1] Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/johnson-johnson-condenada-a-pagar-21-bilhoes-de-dolares-por-talco-ligado-a-cancer/ Acesso realizado em 17/8/2022.

[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/business/johnson-johnson-para-de-vender-talco-infantil-nos-eua-e-no-canada/. Acesso realizado em 17/8/2022.

[3] Disponível em https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/08/16/com-decisao-global-johnson-and-johnson-vai-retirar-talco-a-base-de-minerais-do-brasil.ghtml. Acesso realizado em 17/8/2022.

[4] Sindell v. Abbott Laboratories, (1980) 26 Cal. 3d 588.

[5] Disponível em https://exame.com/mundo/fabricante-alema-de-talidomida-pede-perdao-a-vitimas/. Acesso realizado em 17/8/2022.

[6] "Os vícios de qualidade, por sua vez, dividem-se em vícios de qualidade por insegurança e vícios de qualidade por inadequação. Aqueles são vícios que atentam contra a saúde e segurança do consumidor, contra a sua integridade físico-psíquica, ao passo que estes se caracterizam pela inservibilidade do produto aos seus fins, pelo seu inferior desempenho, violando unicamente a integridade patrimonial do consumidor." (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 90)

[7] BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2020, p. 183.

[8] Idem, p. 185/189.

[9] "Apelação cível. Consumidor. Ação de indenização por danos morais advindos de produto defeituoso. Produto de periculosidade inerente, inexistência do dever de indenizar. Recurso improvido. 1. Hipótese dos autos em que as apelantes passaram mal após a utilização do produto fabricado pela apelada (inseticida aerossol), alegando que tal fato decorreu de falha no dever de informação, razão pela qual pleiteiam o pagamento de indenização por dano moral. 2. Tratando-se de produto de periculosidade inerente, cujos riscos são normais à sua natureza (inseticida aerossol no qual informado inclusive risco de morte em caso de ingestão) e previsíveis (na medida em que o consumidor é deles expressamente advertido), eventual dano por ele causado ao consumidor não enseja a responsabilização do fornecedor, porquanto não se trata de produto defeituoso. 3. Recurso improvido." (TJ-MA - AC: 00070474720158100001 MA 0125012019, relator: Kleber Costa Carvalho, data de julgamento: 22/8/2019, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 29/8/2019)

[10] "São considerados produtos defeituosos por ficção. É o caso de um brinquedo que apresente grandes possibilidades de sufocação da criança" (BENJAMIN, Antonio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima. BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor, op. cit., p. 189.)

[11] Art. 12 (...) - §1º - III - a época em que foi colocado em circulação. § 2º O produto não é considerado defeituoso pelo fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

[12] REsp nº 1.899.304/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 2ª Seção, julgado em 25/8/2021, DJe de 4/10/2021.

[13] "O ordenamento jurídico não exige que os medicamentos sejam fabricados com garantia de segurança absoluta, até porque se trata de uma atividade de risco permitido, mas exige que garantam a segurança legitimamente esperável, tolerando os riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, desde que o consumidor receba as informações necessárias e adequadas a seu respeito (art. 8º do CDC)." (REsp n. 1.774.372/RS, relatora Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe de 18/5/2020)

[14] "Tal afirmação, embora feita em um recurso não submetido ao rito dos “recursos repetitivos”, representa um importante precedente que tende a ser seguido pelos demais Tribunais inferiores e que coloca o Brasil entre os países que não reconhecem os riscos do desenvolvimento como uma excludente da responsabilidade civil do fornecedor de produtos. Representa, assim, um sopro de esperança em meio a tantas incertezas que são observadas, especialmente, na indústria farmacêutica." (CALIXTO, Marcelo Junqueira. "Responsabilidade Civil pelos riscos do desenvolvimento, pandemia de Covid-19 e vacinas." In Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo, coord. MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo (et al.), São Paulo, Editora Foco, 2022, p. 336)

[15] REsp nº 1.358.615/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 2/5/2013, DJe de 1/7/2013.

[16] "(...) a Constituição Federal, ao contrário, pôs a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico ao estabelecer, no art. 1º, III, que sua dignidade constitui um dos fundamentos da República, assegurando, desta forma, absoluta prioridade às situações existenciais ou extrapatrimoniais." (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na Medida da Pessoa Humana, estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2019, p. 21/22.)

[17] Disponível em https://www.inca.gov.br/publicacoes/cartilhas/amianto-cancer-e-outras-doencas-voce-conhece-os-riscos. Acesso realizado em 17/8/2022.

[18] ADI 3.470, rel. min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, Julgamento: 29/11/2017, STF.

Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 02/11/2022

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