Crédito consignado contratado sem a solicitação do consumidor
Publicado em 22/09/2022 , por Ricardo Morishita Wada
O crédito consignado foi instituído pela Lei nº 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Seu objetivo é assegurar condições de adimplemento de obrigações e oferta de crédito em condições mais acessíveis aos consumidores.
A engenharia jurídica que permite assegurar o adimplemento da obrigação está na autorização para que o fornecedor de crédito desconte as prestações diretamente na folha de pagamento ou remuneração dos consumidores.
É a fonte pagadora que realiza o pagamento dos valores referentes aos empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil concedidos por instituições financeiras.
O consumidor deve manifestar sua vontade na contratação, seja na modalidade tradicional de empréstimos, com prazo e parcelas definidas ou nos casos de contratação mediante cartão de crédito consignado.
No caso da utilização do cartão de crédito, embora muito parecido com a utilização normal, terá a fatura descontada de forma total ou parcial na folha de pagamento ou aposentadoria do consumidor.
O cartão de crédito representa um instrumento importante para as relações de consumo, pois confere muita rapidez em todo processo de contratação. No entanto, sabe-se que exatamente por isso é o que também representa o maior risco para os consumidores [1].
Compreender de forma adequada, informada e consciente os efeitos do pagamento parcial é um grande desafio para os consumidores, pois envolve uma complexa operação de contratação de crédito [2].
Há um grande contraste entre a simplicidade da contratação do crédito utilizando cartão. O simples pagamento parcial da fatura, por exemplo, implica na contratação do crédito, que envolve o pagamento de juros e encargos financeiros, consoante previsão nos contratos celebrados.
O eixo que estrutura as normas de proteção ao consumidor centra-se na pessoa do consumidor, consoante previsão como direito fundamental no artigo 5º, XXXII da Constituição da República. Compreende-se também que a atividade econômica e empresarial deve incluir a defesa do consumidor nos seus preceitos, pois se trata de um dos princípios da ordem econômica constitucional, nos termos do artigo 170, V, da Carta Fundamental.
Vale dizer, os serviços devem nascer com a preocupação e o cuidado com o consumidor. Logo, a informação, transparência e a boa-fé devem ser consideradas antes e durante a conformação dos produtos e serviços, juntamente com sua sustentabilidade, rentabilidade e interesse do empreendimento. É a proteção do consumidor by design.
Neste sentido, a Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021, que altera o Código de Defesa do Consumidor para aperfeiçoar a disciplina do crédito e da prevenção e tratamento ao Superendividamento, reestruturou no ordenamento a nova arquitetura protetiva do consumidor nas contratações de crédito.
Reconhece-se como direito do básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável [3]. Numa acepção ampla é possível considerar responsável, minimamente, aquela contratação que cumpre com as obrigações previstas na lei.
A violação do dever de crédito responsável, entre outras, acarreta a redução dos juros, encargos ou qualquer acréscimo ao principal do crédito, entre outras medidas, a ser implementada judicialmente, consoante prevê o artigo 54-D, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor.
Em junho de 2020, o Banco Central do Brasil lançou um estudo sobre o denominado "endividamento de risco no Brasil" [4] e apontou que entre junho de 2016 até dezembro de 2019, 4,6 milhões de tomadores de crédito encontravam-se em situação de endividamento de risco [5].
Considerou-se, para fins do estudo realizado pelo Bacen [6], que o endividamento de risco ocorre quando o consumidor se enquadra em duas ou mais hipóteses graves, indicativas do risco. Elas podem ser: a) o inadimplemento das parcelas superior a 90 dias; b) comprometimento da renda com pagamento das dívidas acima de 50%; c) contratação de mais de uma modalidade de crédito, tais como cheque especial, crédito pessoal sem consignação ou crédito rotativo; e d) renda disponível após o pagamento das parcelas abaixo da linha de pobreza
A conclusão [7] da investigação realizada pela autoridade financeira que desperta atenção foi que "a população de renda média — entre R$ 2.000 e R$ 10 mil — e com idade acima de 54 anos mostra-se financeiramente mais vulnerável", encontrando-se em situação de endividamento de risco.
Foi estabelecida também uma convergência entre o endividamento de risco e o superendividamento, o que exige, conforme recomendado pela autoridade monetária e financeira, medidas de prevenção e tratamento do endividamento de risco do consumidor.
No ranking de reclamações do Banco Central do Brasil, o número de reclamações reguladas consideradas procedentes em relação a oferta ou prestação de informações sobre crédito consignado de forma inadequada ocupa o primeiro lugar com 6.798 registros [8], no primeiro trimestre de 2021.
No mesmo sentido, a Secretaria Nacional do Consumidor, segundo informa seu site de notícias, firmou compromisso com a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e a Associação Brasileira de Bancos (ABBC) para aplicar com maior rigor as punições aos infratores, tendo em vista o aumento de mais de 100% das reclamações dos consumidores em relação ao crédito consignado [9].
Os esforços empreendidos pela Senacon, Febraban e ABBC são importantes e o sistema de Autorregulação como medida de responsabilidade e compromisso setorial podem resultar em avanços significativos para política de proteção ao consumidor.
No entanto, a proteção do consumidor precisa assegurar efetividade para o dia a dia do consumidor. É necessário que ela seja capaz de trazer uma solução para o sujeito da proteção, notadamente para aqueles especialmente vulneráveis, como os idosos e aposentados.
Necessário recordar que a previsão do artigo 39, IV do CDC prescreve aos idosos uma especial tutela na contratação de produto ou serviço. Declara-se a abusividade do fornecedor que prevaleça da condição de hipervulnerabilidade [10] do consumidor idoso para obrigar ou impor um produto ou serviço.
A nova tutela trazida pela Lei do Superendividamento, especialmente o art. 54-C, inciso IV reitera a preocupação do legislador com os idosos [11]. O assédio ou a pressão para contratar o fornecimento de serviços ou crédito reconhece a condição de vulnerabilidade agravada e estabelece com clareza os limites a serem respeitados.
A oferta precisa ser cuidadosa, mais informativa que apelativa, mais cerimoniosa que invasiva, guardar distância de respeito daquele que recebe a oferta. O órgão australiano de proteção ao consumidor e concorrência [12]considera o assédio de consumo como sendo a perturbação ou tormento persistente ao consumidor. Ele também entende que ocorre o abuso ou excesso quando a frequência, natureza ou conteúdo das abordagens são calculadas para intimidar, desmoralizar, cansar ou exaurir a pessoa.
A caracterização do assédio é sempre um desafio, mas desde a edição da Resolução nº 4.539, de 24 de novembro de 2016, pelo Banco Central do Brasil, o caminho para proteção ao consumidor parece ter ficado mais claro e também mais direto.
A política institucional de relacionamento com clientes e usuário de produtos e serviços financeiros utiliza mecanismos de regulação responsiva prescreve a obrigação dos fornecedores de serviços financeiros serem transparentes na relação com o consumidor.
O assédio de consumo deve ser endereçado nos procedimentos, rotinas e operações realizadas pelas instituições. O artigo 5º da Resolução Bacen estabelece a obrigação das instituições assegurarem a consistência de rotinas e de procedimentos operacionais quanto ao relacionamento com os clientes, entre outras, aquelas relacionadas aos requisitos de segurança de produtos e serviços.
Espera-se, legitimamente, que os produtos financeiros não acarretem danos aos consumidores (artigo 8º do CDC). Não se trata apenas dos riscos relacionados a fraude, furto de identidades e outros mais afetos as transações eletrônicas, mas também a segurança do consumidor nas ofertas de crédito realizadas.
Notadamente, a contratação de crédito inadequada, que não respeite os limites existentes, pode afetar a vida do consumidor. O impacto não é pequeno, pois o endividamento de risco, superendividamento e a perda do acesso ao mercado de crédito representa uma das mais impactantes exclusões na sociedade de consumo.
É por esta razão que a política de relacionamento com o cliente precisa prever e endereçar de forma satisfatória, isto é, com consistência e adequação, as rotinas e procedimentos operacionais que se evitem o assédio de consumo na oferta e contratação de crédito.
A transparência da política de relacionamento com o cliente exige que os conflitos de interesse fiquem claro e que as decisões que endereçam sua solução precisam ser legítimas, justas e equitativas para os consumidores.
Merece especial atenção o inciso XIII, do artigo 5º, da referida resolução. Nele consta de forma expressa os sistemas de metas e incentivos, eventualmente utilizados pela instituição, para o desempenho de empregados e terceiros que atuem em seu nome.
É possível considerar que o assédio de consumo e outras práticas abusivas possam ser incentivadas quando há um apetite ao risco exacerbado ou inconsequente. Se o sistema de metas e incentivos ao desempenho forem muito agressivos, parece correto assentir que a instituição assume o risco de lesão aos consumidores.
A análise das políticas de relacionamento pode marcar um novo momento nas ações regulatórias que afetam imensamente a vida dos consumidores. O escrutínio da política de relacionamento pode ser crucial para o avanço no combate aos excessos e abusos no mercado de consumo.
Há outra linha de medidas que foram elaboradas para assegurar aos consumidores a efetividade dos seus direitos. Trata-se das medidas que produzem efeitos imediatamente e representam incentivos proporcionais as eventuais e injustas agressões que o consumidor pode sofrer.
O envio de produto ou serviço sem a solicitação do consumidor é uma destas medidas. Prevista no artigo 39, III do CDC, o envio de serviço sem solicitação do consumidor é considerado uma prática comercial abusiva [13]. O consumidor não é considerado nesta relação, pois sua manifestação de vontade não é relevante para que o fornecedor execute o contrato.
Como o serviço não foi solicitado, muitas vezes o consumidor nem nota que houve a contratação e até mesmo a cobrança ou débito dos valores. No caso de crédito consignado, o fato de valores serem depositados não tornam óbvia ou imediata a percepção do consumidor. Nos casos de consumidores com saldo devedor na conta, o que foi creditado serviu apenas para saldar outras dívidas existentes. Ficou apenas o dissabor do débito e do financiamento não pretendido ou contratado.
É usual que o consumidor idoso, aposentado, que sofreu um imenso impacto na sua renda quando se aposentou, especialmente em tempos de pandemia, tenha ainda a necessidade do crédito. Isto não significa que possa ele receber o serviço sem sua escolha e manifestação. O envio de produto ou serviço sem solicitação retira do consumidor idoso a possibilidade e a liberdade de escolher e devolve, como contrapartida, apenas o dever de pagar por um crédito que muitas vezes sequer teve a possibilidade de usufruir.
A limitação da liberdade é grave. Fonte geradora de insegurança jurídica pode acarretar inúmeros prejuízos aos consumidores e em especial aos consumidores idosos e aposentados.
Por esta razão, o legislador de proteção do consumidor considerou que o produto ou serviço enviado sem solicitação do consumidor, nos termos do artigo 39, III do CDC, é equiparada à amostra grátis [14], inexistindo obrigação de pagamento [15].
O abuso de direito ocorre porque uma das partes não pode ou consegue se opor ao interesse do fornecedor. Sua condição de desequilíbrio é notória e por isso a necessidade da intervenção legislativa.
Os meios para controlar o abuso, ao que parece, não tem produzido os efeitos esperados. Transfere-se ao hipervulnerável o ônus de desafazer o contrato celebrado sem seu consentimento ou mesmo manifestação.
Compreende-se que a complexidade da operação e a participação de vários atores aumenta imensamente o risco de abusos ou excessos. Entretanto, até o momento é o consumidor que tem suportado todos os aspectos negativos do abuso.
Desobrigar o consumidor do pagamento do crédito realizado sem solicitação, nos parece um importante incentivo para reequilibrar a relação de oferta de crédito consignado aos aposentados. O risco da atividade não pode ser suportado pelos aposentados, que possuem direitos reconhecidos e declarados por diversas leis e em especial pelo Código de Defesa do Consumidor.
O remédio é amargo, mas pode ajudar no reequilíbrio dos incentivos dessa relação. Trata-se de disposição expressa do parágrafo único do artigo 39 do CDC, norma de ordem pública e interesse social (artigo 1º do CDC). Zippellius [16] nos lembra que "as normas jurídicas não servem para o conhecimento do mundo, mas para a ordenação da actuação. Isto significa que estas normas acabam por ser, no fundo, normas práticas, portanto regras de actuação".
É urgente atuar na proteção dos consumidores aposentados. O tempo importa e muito, especialmente num momento de pandemia. Trata-se de uma ação que nos dará a medida de nossa evolução como sociedade, instituições e pessoas.
[1] Enquanto a taxa de crédito pessoal consignado INSS varia entre 1,18% a.m a 1,86%a.m., a taxa do cartão de crédito consignado varia entre 2,46% a.m a 16,08% a.m. Vide: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros?parametros=tipopessoa:1;modalidade:218;encargo:101 e https://www.bcb.gov.br/estatisticas/reporttxjuros?parametros=tipopessoa:1;modalidade:215;encargo:101, consultados em 14 de julho de 2021
[2] Vide https://www.bcb.gov.br/cidadaniafinanceira/cartaodecredito. Consultado em 7 de julho de 2021.
[3] Vide art. 6º, XI, incluído pela Lei 14.181, de 1º de julho de 2021.
[4]Vide: https://www.bcb.gov.br/content/cidadaniafinanceira/documentos_cidadania/serie_cidadania/serie_cidadania_financeira_6_endividamento_risco.pdf. Consulta em 7 de junho de 2021.
[5] Antes da pandemia global da Covid-19.
[6] Idem. p. 6
[7] Ibidem. p. 27
[8] Vide: https://www.bcb.gov.br/ranking/index.asp?rel=outbound&frame=1. Consulta em 7 de julho de 2021.
[9] Vide: https://www.defesadoconsumidor.gov.br/portal/ultimas-noticias/1859-secretaria-nacional-do-consumidor-firma-compromisso-com-bancos-para-evitar-fraudes-no-credito-consignado. Consulta em 7 de julho de 2021.
[10] Vide MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a protec?a?o dos vulnera?veis. Sa?o Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Livro eletro?nico.
[11] A proibição estabelecida pelo art. 54-C, IV é geral, isto é, não se destina apenas a tutela contra o assédio do consumidor hipervulnerável, mas a todos os consumidores. E, também, importante registrar que não tutela apenas o idoso, mas reproduz a tutela dos sujeitos que gozam de uma especial proteção como o analfabeto, doente e o que se denomina "estado de vulnerabilidade agravada" e ainda se a contratação, isto é, o incentivo para venda envolver prêmio para o fornecedor.
[12] Vide: https://www.accc.gov.au/publications/advertising-selling/advertising-and-selling-guide/other-prohibited-sales-practices/harassment-and-coercion. Consulta em 7 de julho de 2021.
[13] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Leis civis e processuais civis comentadas. 4ª ed. Sa?o Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. Livro eletrônico.
[14] Importante não confundir o conceito de amostra grátis previsto no Decreto nº 7.212/2010, que prevê, para fins de isenção do IPI que o produto tenha valor diminuto ou nenhum valor comercial. No regime do microssistema das relações de consumo, a desobrigação de pagamento, não importa o valor que seja, decorre da abusividade praticada pelo fornecedor.
[15] BENJAMIN, Anto?nio H. et al. Manual de Direito do Consumidor. 7ª ed. Sa?o Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
[16] ZIPPELLIS, Reinhold. Teoria do Método Jurídico. Saraiva, São Paulo, 2016.
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 21/09/2022
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