Número de famílias pressionadas por aluguel dobra em 15 anos
Publicado em 13/10/2020 , por Fernanda Brigatti
Gasto excessivo compõe o déficit habitacional; política para quem ganha até 3 salários está indefinida
O número de famílias que gastam mais de um terço de seus orçamentos domésticos com aluguel mais do que dobrou em 15 anos no Brasil.
Em 2019, eram 3,3 milhões as famílias com renda de até R$ 3.135 (três salários mínimos) gastando mais de 30% do que ganhavam com essa despesa, elevando a 7,8 milhões o número de moradias necessárias para zerar o déficit habitacional.
Quinze anos antes eram 1,5 milhão de famílias nessa situação. Os dados são de estudo da Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) e apontam uma contradição —a piora nesse indicador de acesso à moradia coincide com período de lançamento e consolidação do programa Minha Casa Minha Vida, que deveria ter feito o inverso
Chamado de ônus elevado com aluguel, o avanço no número de famílias pressionadas por essa despesa impediu uma redução maior no déficit habitacional ampliado.
O estudo da Abrainc utilizou o conceito desenvolvido pela Fundação João Pinheiro, que inclui, além da falta de moradia, a inadequação dessas instalações e do acesso. Habitações precárias, rústicas, nas quais vivem mais de uma família e cômodos ocupados por mais de uma pessoa entram no chamado déficit restrito. Quando inclui o gasto com aluguel, tem-se o déficit ampliado.Nos últimos 15 anos, todos os demais indicadores melhoraram. Por isso, o professor convidado da FGV, Robson Gonçalves, que organizou o estudo, diz que a compreensão das políticas para habitação devem partir do déficit restrito.
“O ônus com aluguel é um elemento que oscila muito e não está relacionado diretamente à qualidade ou escassez de habitação. Se uma pessoa fica desempregada, passa a gastar mais com aluguel. É um indicador que tem mais relação com a renda.”
Para ele, a redução de 44% no número de habitações precárias entre 2004 e 2019 indica acertos da política de habitação. Entre 2017 e 2019, a redução foi 9,3%, diz o estudo.
“Imaginar que um programa que entregou milhares de unidades não tem méritos é uma leitura equivocada. Para essas pessoas [pressionadas pelo aluguel], não faltou moradia, faltou renda.”
O presidente da Cbic (Câmara Brasileira da Indústria da Construção), José Carlos Martins, diz que é necessário investigar melhor o problema.
Ele acredita que isso pode ter relação com o que considera como erros do Minha Casa Minha Vida.
O primeiro foi a falta de uma política integrada de assistência social, que permitisse uma melhor integração das famílias às novas moradias. Gonçalves, da FGV, defende a necessidade de um acompanhamento após a entrega das chaves.
Outro erro, na avaliação do presidente da Cbic, foi a opção pela construção de grandes conjuntos de casas e apartamentos. “Isso você só conseguia em terrenos distantes dos grandes centros, com obras demoradas, abrindo margem para muitos problemas. Talvez se a gente tivesse priorizado conjuntos de 200, 300 casas, teria preenchido melhor os vazios urbanos sem levar ninguém para longe.”
Segundo Gonçalves, cerca de 90% do déficit está concentrado entre famílias com renda de até 5 salários mínimos. Quanto menor a renda, maior o comprometimento dela com essas despesas. A pesquisa de consumo das famílias da FecomercioSP mostra que, na classes C, D e E, o gasto com habitação passa de 30% do orçamento.
Nos domicílios em que a renda média é de até R$ 1.950, chega a 39%. Na outra ponta, quando o rendimento passa de R$ 16.900, 23% dos gastos mensais são com moradia.
Para Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção do Ibre-FGV, o número elevado de domicílios pressionados pela despesa com aluguel coloca uma questão sobre a própria política habitacional. “Preciso de novas habitações para resolver? Até que ponto isso tem mais a ver com a terra nos grandes centros urbanos, onde o preço dos terrenos é mais caro?”, questiona a pesquisadora.
Nesse sentido, o custo dos aluguéis acaba refletindo as dinâmicas do mercado imobiliário, que cobra mais por imóveis considerados bem localizados, atendidos por infraestrutura de transporte, equipamentos de lazer, saúde etc.
“Em muitos casos, essas famílias preferem despender um percentual alto de suas rendas com aluguel do que ter uma moradia fora da estrutura urbana e longe do mercado de trabalho”, afirma.
O momento é delicado para as políticas de habitação. Em agosto, o governo Jair Bolsonaro (sem partido) enviou ao Congresso uma medida provisória criando o Casa Verde e Amarela, em substituição ao Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009 pelo ex-presidente Lula (PT).
O anúncio do novo programa deu ao setor confiança de que o atual governo avançará na área, mas a situação das moradias para os mais pobres continua indefinida, uma vez que não há previsão de mais subsídios para esses projetos.
No MCMV, eles eram atendidos pela faixa 1, que recebia 90% de subsídio do governo.
O estudo da Abrainc também projeta uma demanda por 30,7 milhões de unidades habitacionais até 2030. “Sem uma política, o deficit vai crescer”, diz Castelo, da FGV.
No novo programa, o governo quer retomar as obras do antigo faixa 1 já contratadas, mas não há previsão de novas contratações. “Não vai ser o mercado privado que vai bancar isso”, afirma.
Outra preocupação é com a situação do FGTS, hoje o único financiador para o setor. Num momento de queda do emprego formal –que reduz a entrada de recursos no fundo–? e com uma sequência de saques extraordinários, o mercado de construção vê o risco de a fonte secar.
Fonte: Folha Online - 12/10/2020
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