Privilégio tributário de profissionais liberais precisa ser revisto
Publicado em 28/09/2020 , por Daniel Brasil
Na reforma tributária temos a oportunidade de repensar como a sociedade financia os gastos públicos. Buscamos uma tributação que seja justa, eficiente e que gere o mínimo de distorções no mercado.
Neste artigo trato de um benefício tributário que há tempos deveria ter sido extinto, mas que perdura há mais de 50 anos, e faz com que profissionais como advogado, médico e engenheiro paguem menos impostos que os demais.
O ISS (Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza), criado em 1965, tem como base de cálculo o preço do serviço prestado, com alíquota de 2% a 5%.
Acontece que, pouco após a criação do ISS, o Decreto-Lei 406 de 1968 definiu que, quando há responsabilidade pessoal na prestação do serviço, as sociedades profissionais (SUPs) de medicina, enfermagem, fonoaudiologia, medicina veterinária e contabilidade.
Também entram na lista agenciamento da propriedade industrial, advocacia, engenharia, arquitetura, agronomia, odontologia, economia e psicologia devem pagar um valor fixo de ISS, independente do preço do serviço.
Há longas discussões jurídicas sobre constitucionalidade, vigência e abrangência deste dispositivo legal, mas estas fogem ao escopo deste texto.
Trazendo para a economia, fica fácil compreender porque essa tributação gera distorção.
Na cidade de São Paulo, a base de cálculo do imposto é de R$ 1.830,23 por profissional dessas sociedades. A alíquota, de 2% a 5%, depende do serviço prestado, resultando num ISS de R$ 36,60 a R$ 91,51 por mês por profissional.
No Rio de Janeiro o ISS varia de de R$ 85,73 a R$ 257,20, de acordo com o número de profissionais habilitados. Belo Horizonte segue a mesma lógica, variando o imposto de R$ 192,28 a R$ 480,72.
Por exemplo, se um salão de beleza com cinco cabeleireiros fatura R$ 50 mil mensais, ele paga R$ 2.500 de ISS por mês. Já um escritório de contabilidade, com o mesmo faturamento e mesmo número de profissionais que o salão, pagaria apenas R$ 457 de ISS por mês em São Paulo.
A situação fica ainda mais evidente quando observamos sociedades de maior porte.
Segundo dados da Secretaria Municipal da Fazenda da Prefeitura de São Paulo, obtidos via Lei de Acesso à informação, há 6.913 empresas registradas como SUP na cidade.
O faturamento delas em 2018 foi de R$ 17,2 bilhões, e o recolhimento de ISS totalizou R$ 25 milhões —uma alíquota efetiva de 0,15%.
Só no serviço de advocacia, que teve faturamento médio de R$ 9,6 milhões anuais, a alíquota efetiva foi de 0,13%, contra 5%, que seria a devida se tal benefício não existisse.
A Prefeitura de São Paulo estima que a cidade deixou de arrecadar R$ 823 milhões em 2018 em virtude desse benefício tributário. Tendo em vista que, segundo dados do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro, do Tesouro Nacional, a capital paulista arrecada 23,4% do ISS do Brasil, podemos estimar que a renúncia fiscal no país é de cerca de R$ 3,5 bilhões por ano.
Por que eletricistas, cabeleireiros, diaristas, mecânicos, alfaiates, atores, fotógrafos, programadores, seguranças, corretores e todos os demais prestadores de serviço pagam ISS sobre todo o faturamento, enquanto sociedades de advocacia e clínicas médicas, que funcionam e faturam como grandes empresas, recebem benefícios tributários?
Acrescenta-se o fato de que as profissões beneficiadas são todas exercidas exclusivamente por profissionais com curso superior, o que já os coloca num estrato privilegiado da sociedade.
Nos 50 anos que se passaram da edição do Decreto-Lei 406, o tema foi debatido em diversas oportunidades no Congresso e na Suprema Corte, porém segue vigente.
Agora, no âmbito da reforma tributária, podemos tentar, mais uma vez, corrigir esse erro. Em tempos de recessão econômica, dívida pública elevada, desemprego e congelamento de gastos públicos, não há espaço para manter políticas que, além de gerarem renúncia fiscal, beneficiam os setores mais privilegiados da sociedade.
Fonte: Folha Online - 27/09/2020
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