O estranho caso do médico que prescreve remédio antes do diagnóstico
Publicado em 02/12/2019 , por Caio Ferraris
Imagine você, em um consultório, com fortes dores de cabeça, contando ao médico todos os sintomas que têm enfrentado ao longo da última semana.
Corpo mole, dificuldade de se concentrar, tontura e tantos outros. Sua preocupação é evidente, caso contrário não estaria naquela consulta. E como um passe de mágica, sem levantar-se da cadeira, sequer olhando para você, o médico prescreve um remédio tarja preta, extremamente forte e invasivo.
Nenhum exame é requisitado. Nenhum procedimento é adotado. Nem mesmo auscultar o coração ou medir sua pressão. Estranho, não?
É justamente o que acontece quando se invoca a desnecessidade de laudo pericial que ateste a real impropriedade ao consumo dos produtos fora da validade no âmbito do artigo 7º, inciso IX, da Lei 8.137/90, com correspondência com o artigo 18, parágrafo 6º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.
Explico.
Referida modalidade delitiva, enquadrada nos crimes contra as relações de consumo, traz a seguinte redação:
Vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo.
Trata-se, assim, de delito não transeunte, ou seja, aquele que deixa vestígios e, portanto, a comprovação da materialidade segue a determinação estampada no artigo 158, do Código de Processo Penal: “Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão”.
Nesse contexto, é indispensável a realização de perícia técnica para comprovação da existência material do delito. Em outras palavras, exige-se que um expert ateste que determinado produto arrecadado efetivamente estava impróprio ao consumo.
Independente do embate doutrinário e jurisprudencial acerca da natureza do crime em análise, se de perigo concreto ou presumido, entendemos que a necessidade do exame do corpo do delito permanece incólume. Há a necessidade de verificar que os produtos fora da validade realmente eram impróprios ao consumo.
Argumenta-se, em posição contrária, que por se tratar de norma penal em branco, complementada pelo artigo 18, parágrafo 6º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, a impropriedade ao consumo é presumida, sendo dispensável a análise pericial. Ou pior, chega-se a sustentar a possibilidade de elaboração de laudo de fotografação como exame idôneo do corpo do delito.
Com efeito, a mera constatação do prazo de validade, e consequentemente se determinado produto está ou não dentro de tal lapso, não necessita de qualquer expert. Basta, para isso, um smartphone que consiga captar, com razoável resolução, fotografia do produto arrecadado.
Não é essa prova exigida por lei, alinhada ao princípio da lesividade do sistema penal.
O mencionado artigo consumerista segue outra lógica de responsabilização, de forma que utilizá-lo, sem filtros, no Direito Penal levaria à aplicação de sanção em razão de conduta que pode não apresentar qualquer risco ao bem jurídico tutelado.
Evidentemente, o fornecedor que expõe a venda produtos fora da validade pode ser objetivamente responsabilizado por sua conduta, na lógica ato/nexo causal/resultado, em outras searas do Direito. Contudo, no Direito Penal, ultima ratio, deve-se exigir algo a mais. Deve exigir, além do dolo/culpa, a aferição, ao menos em grau de risco, de que os produtos fora da validade ofendem à saúde humana.
Caso contrário, a resposta estatal seria a mesma seja para os casos em que o Direito Administrativo e Civil seriam suficientes para prevenção e repressão da conduta, seja para as hipóteses mais graves que reclamariam a utilização do Direito Penal.
Um exemplo tonará a questão mais clara.
Uma peça de mussarela possui de quatro a seis meses de validade pelo fabricante. Contudo, quando fracionada e acondicionada em bandejas de isopor, a orientação é que o produto seja consumido em até cinco dias. O fornecedor faz a manipulação do queijo no dia 1º e, como margem de segurança, imprimi na etiqueta o dia 3 como prazo de validade[1].
Considerando uma fiscalização do dia 4, os produtos estariam impróprios ao consumo?
Do ponto de vista objetivo, que poderia gerar sanções administrativas e civis, entendemos que sim. O produto está exposto à venda em data posterior ao prazo de validade estampado na etiqueta.
Agora, nesse mesmo caso, o leitor entende que há necessidade de intervenção do Direito Penal? Se realizado o exame pericial para atestar a real impropriedade do produto ao consumo, ao que tudo indica a conclusão do expert seria pela validade do queijo.
Ou seja, ao se sustentar a desnecessidade de realização de perícia, mesmo nos produtos com prazo de validade expirado, no âmbito do processo penal, é lançar mão de um instrumento sem que se avalie a real necessidade de sua utilização.
Seria como prescrever remédio sem diagnóstico. Seria o Estado/médico desmunido dos laudos periciais/exames, presumir por força de lei que os produtos ofendem, ou poderiam ofender, o bem jurídico protegido pela norma penal. Seria, como no estranho caso mencionado no início, prescrever, de antemão, um remédio traja preta para uma dor de cabeça.
[1] As datas de referência são meramente estipuladas para fins de debate e não condizem necessariamente com a realidade.
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 30/11/2019
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