Natureza suplementar do serviço de assistência privada dos planos de saúde
Publicado em 18/09/2019 , por Eliezer Queiroz de Souto Wei
Segundo dados da ANS[1], o quadro atual de beneficiários de planos de saúde contabiliza aproximadamente, 47.000.000.000 (quarenta e sete milhões de usuários). A quantidade de Operadoras equivale a quase 740 (setecentos e quarenta) empresas. A receita destas pessoas jurídicas alcançou em 2018, algo em torno de R$ 195.000.000.000.000 (cento e noventa e cinco bilhões de reais) contra quase R$ 161.000.000.000.000 (cento e sessenta e um bilhões de reais) de despesas. O Poder Judiciário atua neste cenário, que é complexo e bastante regulamentado.
A natureza do negócio jurídico do contrato de plano de saúde privado admite restrições (não abusivas), enquanto que o trabalho oferecido pela Administração Pública deve ser realizado de modo amplo (que é o desenho constitucional) e mesmo assim, para que se possa atingir a coletividade, os recursos estatais disponíveis para os cidadãos são limitados, face dotação orçamentária.
A saúde é direito de todos e isso está garantido na Constituição Federal, no art. 196, sendo dever do Estado prestar este serviço, que deve viabilizar o acesso dos cidadãos aos benefícios do setor público, todavia, os recursos (financeiros e estruturais) ainda são restritos, haja vista que o orçamento e pessoal disponibilizados pelo Governo não é o bastante para o atendimento de toda a demanda solicitada.
Não obstante, considerando o teor de algumas decisões da justiça brasileira, entende-se que o serviço de cobertura dos planos privados de saúde tem se ampliado de tal modo que a assistência à saúde suplementar, muito embora seja de natureza contratual, se torna a prestação de saúde para todos, fato que caracteriza uma superposição de funções.
O momento delineado pela economia brasileira prima por discussão pontual sobre trabalho de aprimoramento dos juízes, em cooperação com os advogados dos consumidores e das operadoras/ seguradoras de saúde. Necessário registrar que as negativas de cobertura dos serviços assistenciais são realizadas com embasamento na Lei 9.656/1998, que regulamenta a atividade dos planos de saúde privados e ainda, com escopo nas resoluções normativas da Agência Nacional de Saúde – ANS, órgão regulador autorizado pelo Constituinte, com atuação no setor privado da saúde.
Insta consignar, no entanto, que a ruína do fornecedor será também a do consumidor. Isso é fato. Aquele, detentor legítimo de direitos (como o usuário de plano de saúde também é), enquanto fornecedor, ao ser compelido a custear coberturas extracontratuais, de serviços que oneram demasiadamente o contrato, faz com que, posteriormente, os usuários dos planos de saúde paguem mais caro por conta dos valores do serviço majorados em virtude da atividade prestada de modo superveniente, esta que não era prevista originalmente no negócio jurídico avençado.
Muito embora a Justiça Brasileira tenha o conhecimento da legislação que envolve o setor, não se visualiza numa boa parte das decisões judiciais, a fundamentação que necessariamente se espera constar, advinda da Lei 9.656/1998 e da regulamentação da ANS (esta, praticamente inexiste em boa parte das fundamentações). O que se vê muito é a exposição da Constituição Federal com a inserção dos princípios constitucionais do direito à vida, direito à saúde, dignidade da pessoa humana, fins sociais do direito e a preservação do Código de Defesa do Consumidor. Nota-se, todavia, que em vários casos submetidos à Jurisdição, a resposta (saída), o embasamento para a resolução do caso concreto está justamente, insculpida na norma regulamentar expedida pelo Órgão Regulador.
Ocorre, portanto, o fenômeno da judicialização, o qual demonstra que o Judiciário intervém em política pública positivada criando ou mesmo desprezando a regra posta. A Judicialização ocorre quando se decide na justiça, matéria que não foi resolvida como deveria ser, pelos Poderes Executivo ou Legislativo.[2]
Recentemente, o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, o Dr. João Otávio Noronha afirmou que uma decisão judicial não pode inviabilizar a atividade da Operadora de Saúde, argumento exposto no 9º Congresso Jurídico de Saúde Suplementar, realizado em Brasília. Considerou que uma decisão judicial do setor pode gerar alto impacto na economia brasileira e que tal posicionamento pode colocar em risco todo o setor privado de saúde.[3]
Exemplo do que se fala é o caso concreto da carência contratual. Se o cidadão que adquire um plano de saúde precisa aguardar 180 (cento e oitenta) dias para, após isso, se utilizar de consultas e exames médicos, não faz sentido que, após negativa de cobertura pela operadora face não cumprimento deste lapso temporal, o beneficiário consiga a autorização e custeio mediante ordem judicial. Isso normalmente não acontece, vale frisar, mas serve como explicação da problemática que se apresenta, que se deve combater e que está majorando os custos da saúde privada.
Pertinente apenas abrir um “parêntese” para expor que não é de fato o que acontece, neste exemplo da carência citado (meramente ilustrativo, tomado como ponto de partida para desenvolver o tema aqui tratado). Neste caso, observamos decisões corretas, considerando que, não havendo a urgência ou emergência que se faz necessária, o Judiciário não contempla a procedência.[4]
E que fique claro que a justiça brasileira tem detido de modo mais cuidadoso para a análise dos temas referentes à saúde suplementar. A questão é que estes estudos devem ser realizados, com mais constância, com mais discussões entre os profissionais envolvidos, de modo que a legislação possa ser efetivamente aplicada. É possível citar a negativa de pedido urgente liminar, na qual se verifica que um material específico, como a lente intraocular (prótese) a ser oferecida pela operadora/ seguradora de saúde oferece o alcance desejado, ou seja, o sucesso de cura da patologia indicada (acontece bastante no combate à catarata).[5]
Voltando mais detidamente para a temática, partindo para exemplo mais sólido, vale falar sobre a não obrigatoriedade do custeio, pelos planos privados, da fertilização in vitro. A previsão da exclusão contratual é legal, está contida na Lei 9.656/1998, nos regulamentos do setor, através das resoluções normativas da ANS e mesmo assim, em alguns Estados, juízes determinam que a operadora arque com as despesas assistenciais, alegando abusividade da cláusula do contrato, que gera nulidade face aplicação do Código de Defesa do Consumidor (Processo nº 8005201-52.2019.8.05.0001, 12ª vara cível da comarca de Salvador/BA). Notadamente, os pedidos adotados pelos consumidores não vem sendo aceitos pelo STJ, pelas razões legais apontadas.
Neste sentido, imperioso observar que, na Lei 9.656/1998, no art. 10, inciso I, é lícito excluir do contrato de assistência privada à saúde do cidadão, a inseminação artificial e ainda, em conformidade com a Resolução Normativa da ANS 428, no art. 20, §1º, inciso III, é permitida o afastamento contratual de qualquer técnica de reprodução assistida. O STJ tem se manifestado conforme a legislação prevê (recursos especiais números: 1.590.221/DF; 1.692.179/SP; 1.749.598/SP; 1.439.021/SP). Então por que alguns magistrados atuam em sentido contrário à norma e ao entendimento, à interpretação literal desta? Não faz sentido.
Ademais, decisões judiciais nas quais se determina a penhora on line de contas bancárias das operadoras de saúde, quando apenas se alega no processo que a autorização judicial está prestes a ser descumprida, sem qualquer comprovação de tal fato, estando o prestador contratado pela operadora cumprindo com a obrigação judicialmente imposta, oneram demasiadamente o contrato. E pior, ainda que o prestador de serviços não seja parte do processo, se beneficia com bloqueio dos valores que estavam sendo discutidos, face benefício médico imposto pelo Judiciário. Essa é uma parte do panorama da judicialização da saúde que se fala e que deve ser revisto, pois, no caso, caberia apenas um ajuste, uma negociação entre a operadora de saúde e o prestador.[6]
Continuando com os argumentos, também não são poucas as vezes em que a operadora de saúde autoriza o tratamento médico, libera a guia de autorização do serviço e ainda, encaminha telegrama para o usuário, mediante ordem judicial, mas o consumidor nunca comparece para se utilizar do atendimento e o realiza com profissional à sua escolha, mas que não compõe a rede referenciada do seu contrato e ainda assim, os juízes aceitam a inépcia do argumento de que houve descumprimento e por isso, determinam a constrição judicial das quantias referentes aos honorários médicos.[7]
Face argumentos de embasamentos padrões, sem que se realize uma análise mais detalhada dos temas que envolvem a área da saúde suplementar, o Poder Judiciário, ao argumentar, na maioria das vezes que há abusividade, desta forma, dando ênfase e privilégio sobremaneira ao CDC, provoca igualmente, a padronização das defesas de processos futuros das operadoras em casos concretos que contenham a mesma temática. Isso porque não há como fugir da legalidade, ou seja, do fundamento da pretensão de defesa, do que consta na lei, mas nada disso se discute, já que os regulamentos são desprezados, que as exclusões contratuais são abusivas, sem maiores explicações acerca do assunto.
As petições iniciais portanto (e fatalmente), constam fundamentos e termos repetidos por conta de tal posicionamento (os argumentos padrões dos consumidores são acatados repetitivamente), trazendo o termo “abusividade” embasadas amplamente no CDC, para se buscar eventual direito não previsto no contrato e por conta disso, a contestação se padroniza também, sendo padronizada portanto, a sentença em vários casos análogos, porque não se desce ao detalhe de se examinar especificamente a controvérsia.
O aperfeiçoamento da técnica jurídica da decisão, portanto, necessita do auxílio dos advogados dos consumidores e das Operadoras de Saúde, em homenagem ao princípio da cooperação, para a efetiva aplicação do direito no caso concreto.
[1] https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais
[2] https://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica?pagina=2
[3] https://www.conjur.com.br/2019-ago-19/decisao-juridica-nao-inviabilizar-operadora-saude
[4] Processo nº 0034010-09.2018.8.17.2001, 31ª vara cível da comarca de Recife.
[5] Processo nº 0029115-68.2019.8.17.2001, 32ª vara cível da comarca de Recife.
[6] Processo nº 0024420-90.2019.8.05.0150, 14ª vara do sistema dos juizados especiais da Comarca de Salvador/BA.
[7] Processo nº 0007396-87.2019.8.05.0150, 1ª vara do sistema dos juizados especiais da Comarca de Lauro de Freitas/BA.
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico - 17/09/2019
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